terça-feira, 27 de julho de 2010

Questão de concurso (MPF)

Dando continuidade à análise de questões de alta complexidade e dificuldade constantes na prova objetiva do último concurso para Procurador da República, vejamos a questão nº 15 da Prova Objetiva:
15. Assinale a opção correta:
a) O Município não pode ajuizar reclamação perante o Supremo Tribunal Federal para garantia do julgado do Tribunal, proferindo em controle abstrato, em face de decisão administrativa estadual.
b) O Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade em face de uma lei, pode reconhecer, incidentalmente, a inconstitucionalidade de outra norma.
c) A interpretação conforme a Constituição diferencia o enunciado lingüístico da norma de seus significados normativos.
d) O sistema jurídico brasileiro contempla a figura da constitucionalidade superveniente e da inconstitucionalidade por omissão total ou parcial.
Consoante o gabarito oficial, seria a letra "c" a alternativa a ser marcada, dado que a assertiva seria a única correta da questão. Passemos à análise específica de cada proposição:

a) O Município não pode ajuizar reclamação perante o Supremo Tribunal Federal para garantia do julgado do Tribunal, proferindo em controle abstrato, em face de decisão administrativa estadual.

Por evidente, reputa-se ser falsa a alternativa “a”. Conforme entendimento do STF, qualquer pessoa física ou jurídica é parte legítima para propor a reclamação constitucional. Para a Suprema Corte, todos aqueles que foram atingidos por deliberações contrárias às decisões de mérito do STF, prolatadas em sede de controle abstrato, podem ajuizá-la (Recl. em AgRg 1.880-QO/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 19/03/2004).

Por conseguinte, caso o Município sofra algum reflexo decorrente da aplicação da decisão administrativa estadual impugnada perante o STF, poderá valer-se da reclamação.

b) O Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade em face de uma lei, pode reconhecer, incidentalmente, a inconstitucionalidade de outra norma.

A alternativa “b” aborda as implicações do chamado “princípio da expansão da sentença declaratória de inconstitucionalidade”. Segundo tal princípio, quando o STF reconhece, em sede de controle concentrado, a inconstitucionalidade de uma norma, as demais que se encontram ligadas a ela também são declaradas inconstitucionais.

De tal princípio deriva-se a idéia de “inconstitucionalidade por arrastamento” (ou conseqüencial ou “por atração”) que ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo, em sede de controle abstrato, acaba por atingir outro não expressamente impugnado na inicial.

No âmbito do controle abstrato, por ser o objeto principal da ação, a declaração de inconstitucionalidade, em princípio, só pode abranger os dispositivos expressamente impugnados. Não obstante, se houver uma relação de dependência entre o dispositivo questionado e outro(s) não impugnado(s), poderá ocorrer uma declaração de inconstitucionalidade por arrastamento (Nesse sentido: STF – ADI nº 437-QO, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/02/2003 e ADI nº 173-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 27/04/1990).

Ocorre que, a despeito de se mostrar uma técnica freqüentemente utilizada pelo STF, não se pode dizer que se trata de um paradigma consensual. Em várias oportunidades, a Corte Excelsa considerou inepta a petição inicial que não expõe os fundamentos jurídicos do pedido, limitando-se a lançar uma alegação genérica de inconstitucionalidade.

Por outro lado, a leitura da alínea “b” da questão permite depreender com mais facilidade a sua incorretude. Ao supostamente admitir o reconhecimento incidental de inconstitucionalidade de outra norma que não seja a impugnada na ADI, a alternativa incide em erro, uma vez que o controle abstrato de constitucionalidade, por apresentar natureza de processo objetivo, segue uma lógica processual diversa do processo comum.

Ora, o reconhecimento de inconstitucionalidade de norma trata-se de objeto central da ADI, não sendo possível o exercício de juízo de constitucionalidade de forma incidental (incidenter tantum) no bojo de uma ação de natureza objetiva. Com efeito, ou o STF limitar-se-á a reconhecer a inconstitucionalidade apenas da norma especificamente impugnada ou, aplicando a técnica da inconstitucionalidade por arrastamento, declarar a inconstitucionalidade das normas que, a despeito de não terem sido impugnadas de modo específico, apresentam relação de dependência com a norma-objeto da ADI.

Assim sendo, dado ser inviável o reconhecimento incidental de inconstitucionalidade no âmbito do controle concentrado, conclui-se ser falsa a alternativa “b”.

c) A interpretação conforme a Constituição diferencia o enunciado lingüístico da norma de seus significados normativos.

A interpretação conforme à Constituição é utilizada como técnica de decisão no âmbito do controle de constitucionalidade.

Em face de normas que possuem mais de uma interpretação (normas plurissignificativas ou polissêmicas), “deve-se preferir a exegese que mais se aproxime da Constituição e, portanto, não seja contrária ao texto constitucional, de onde surgem várias dimensões a serem consideradas, seja pela doutrina ou jurisprudência” (PEDRO LENZA).

Nesse sentido, a evidenciação da pluralidade de “significados” da norma só será possível mediante um processo interpretativo, dado que está a se buscar a conformidade da norma com a Constituição e não meramente a adequação de seu enunciado lingüístico.

Em outras palavras, a aplicação da técnica da interpretação conforme à Constituição pressupõe a distinção entre o enunciado lingüístico da norma e os seus significados normativos.

Com fulcro no método normativo-estruturante, inspirado nas idéias de FRIEDRICH MÜLLER, constata-se que não há identidade entre a norma jurídica e o texto normativo. Ora, o texto normativo não é a lei, é apenas a forma da lei, sendo apenas o suporte físico de significação das normas jurídicas. Por sua vez, a norma jurídica é o significado que o jurista constrói a partir da leitura dos textos.

Dessa forma, deve ser o comando normativo advindo da norma legal compatível com a Constituição, ainda que, a priori, o enunciado lingüístico apresente uma suposta inconstitucionalidade.

Ressalte-se que, além da ocorrência de múltiplas interpretações de uma mesma norma, há que se observar outro pressuposto, qual seja, a existência de um espaço interpretativo para o intérprete, tendo em vista que o limite de interpretação é o texto legal e, dessa forma, não é permitida a utilização da técnica para criar sentido que não esteja abrangido pelas “possibilidades lingüísticas” próprias da norma interpretada.

Em razão do exposto, dada a necessidade de diferenciação entre o enunciado lingüístico da norma e os seus significados normativos para a aplicação da técnica da interpretação conforme à Constituição, mostra-se correta a assertiva apresentada na alínea “c” da questão.

d) O sistema jurídico brasileiro contempla a figura da constitucionalidade superveniente e da inconstitucionalidade por omissão total ou parcial.

Com o advento de uma nova Constituição, dá-se a quebra da ordem jurídica anteriormente estabelecida, visto que surge um novo fundamento de validade para todo o sistema.

Em assim sendo, dúvida não há de que, ocorrendo conflito entre a norma pré-existente e a Constituição então vigente, dever-se-á dar primazia à última. Todavia, não há consenso quanto às regras de resolução de tal situação de incompatibilidade.

Nesse contexto, identifica-se a existência de duas teorias:

- teoria da simples revogação: configura-se a existência de conflito de direito intertemporal (lex posterior derogat priori) que acarreta a simples revogação da legislação incompatível com a nova Constituição, numa colisão a ser resolvida no plano da vigência temporal da norma .

- teoria da inconstitucionalidade superveniente: trata-se de um conflito de natureza hierárquica, implicando a pronúncia da inconstitucionalidade da norma em seu plano de validade. Para tal teoria, portanto, mesmo diante da alteração do parâmetro de controle após - seja pelo surgimento de uma nova Constituição, seja em virtude de uma emenda constitucional - a criação da norma aplicada, será realizado autentico juízo de constitucionalidade, o que, constatada eventual incompatibilidade com o parâmetro então vigente, acarretará a nulidade da norma.

No tocante ao controle abstrato, procedido em relação à lei tem tese, por clara inspiração do sistema austríaco forjado por HANS KELSEN, só seria possível a sua utilização quando a norma inconstitucional fosse superveniente à Constituição. Dessa forma, a teoria da inconstitucionalidade superveniente não é aceita no STF.

Após emblemático debate no bojo do julgamento da ADI nº 02/DF, em 06/02/1992, vaticinou a Corte Suprema, através da relatoria do Ministro Paulo Brossard, que “o vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as”.

Desse modo, por não haver dúvidas de que o sistema jurídico brasileiro não contempla a inconstitucionalidade superveniente no âmbito da jurisdição constitucional, tem-se por incorreta a alternativa “d”.

Fique atento(a)!

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